Amizade Terapêutica para pessoa com Síndrome de Down

O que é Amizade Terapêutica para pessoa com Síndrome de Down? Melhor que explicá-la ou dizer como funciona é mostrar onde ela se insere na vida de alguém.

Há um itinerário facilmente reconhecível pelas famílias das pessoas com síndrome de Down: primeiro o diagnóstico depois a instalação do sentimento de ter que “fazer tudo o que for possível” que se traduz em toda uma vida, desde muito cedo, de peregrinações por profissionais que se propõem a desenvolver habilidades e funções específicas – dos terapêuticos aos profissionais de educação.

Do ponto de vista dos profissionais envolvidos, há, normalmente, empenho de tempo, atenção, dedicação e aportes de conhecimentos estabelecidos visando ao desenvolvimento das habilidades e das funções seja no aspecto preventivo a algum mal possível seja na perspectiva da reabilitação ou melhoria de habilidades e funções (motoras, cognitivas, sociais, etc…).

Do ponto de vista dos pais, há um estado de eterna vigilância e atenção, sem descanso, a todos os detalhes da vida dos filhos que possam se traduzir em investimentos para que haja mais desenvolvimento. Busca-se por psicologia, terapia ocupacional, fisioterapia, dieta, educação física, musculação ginástica, dança, escola, aula particular, viagem, passeio…

Para pensar desde o ponto de vista dos filhos, é preciso uma digressão. Para a pessoa com Síndrome de Down nem sempre é pacífica a imersão nesse processo porque há algo em comum a toda essa engrenagem: a relação sujeito-objeto que se estabelece (e seus efeitos). Uma relação sujeito-objeto se monta assim: de um lado há um sujeito (especialista) com seu cardápio de atividades prontas a ser aplicadas. Do outro lado, está o objeto (o alvo) que é quem deve receber e cumprir com o prescrito.

Numa pessoa “normal” esta relação, quando se estabelece, tende a ser insuportável: quem nunca conheceu alguém que abandonou a academia depois de um mês, às vezes uma semana de prática repetitiva? Guardamos em nós a certeza de que somos sujeitos, de que temos uma vida interior, de que temos uma verdade nossa, interna a nós mesmos que não adere, que não se sujeita a ser mera extensão das projeções de outrem.

Claro, sabemos que quando um educador físico nos diz para repetir tal ou qual sequência aeróbica, sabemos que precisamos cumprir se queremos atingir certos patamares estéticos ou de saúde. Mas sabemos também, por outro lado, que há em nós um elemento de liberdade previamente mantido em nossa alma que nos faz saber (certa ou erradamente) quando protestar, continuar ou cancelar a atividade. Temos liberdade e arcamos com a responsabilidade. Isso porque em nosso começo de vida a liberdade foi conquista e reconhecida – e isso nos fez crescer. E mais: aprendemos a constituir sentido para as coisas da vida que nos cercam e a aderir (ou recusar) quando este sentido não pode se apresentar.

Não é o mesmo que costuma acontecer com as pessoas com Síndrome de Down. Com elas, as imposições (todas necessárias, não se discute isso) nem sempre foram precedidas da conquista da identidade pessoal relativamente madura, autônoma. Toda forma de manifestação pessoal tende a ser tratada não pelo reconhecimento de haver um sujeito na base da fala,de haver um sujeito buscando por significados, mas pela via da desqualificação expressa seja em atos, palavras ou pensamentos: “é preguiça” ou “é teimosia que faz parte da síndrome”.

Aqui, não se discute o empenho dos pais nem as aplicações dos profissionais. Parte-se do princípio de que é tudo correto e necessário.

O que estou tentando destacar é a existência de uma vida pessoal secreta e solitária de pessoas envoltas em um mundo frio de absoluta objetividade em que as relações tendem ao artificial. Minha experiência de trabalho me permite tentar enxergar as coisas pelo ponto de vista das pessoas adultas com Síndrome de Down.

Não é questão de certo ou de errado, mas de pontos de vista.

Parte significativa da vida das pessoas com síndrome de Down parece ser vivida de modo alienado, fora de si mesma, sem a integração de partes importantes de si mesmo dentro da área de sua experiência pessoal. Daí a sensação que temos de não haver vida interior quando não há ninguém estimulando. E ainda mais curiosas são as duas respostas ao estímulo: ou adesão sem queixa, sem “entretanto” nem “todavia”, sem negociação (como se não houvesse vida interior) ou uma resposta “corpo mole”, cujos resultados são ou o encerramento da proposta de trabalho (“ah, ele não se deu bem, é melhor parar e buscar outra coisa para ele”) ou seguir na proposta como quem carrega um piano nas costas (isso para o profissional, para a família e, principalmente, para a pessoa com Síndrome de Down) .

A Amizade Terapêutica é uma abordagem que visa criar as condições para que a vitalidade da pessoa com Síndrome de Down seja encontrada. Construir com ela, a partir dela mesma na relação com o AT, desde aquele recôndito mais íntimo, a ponte para uma inserção na vida que possa ser experimentada pela pessoa de modo verdadeiro: para isso, o AT se vale de encontros sem nenhum objetivo prévio, sem nenhuma habilidade ou função a ser desenvolvida, somente a linha mestra de estar junto, de possibilitar que a vida apareça, que o psiquismo possa se movimentar a partir de referências próprias, que o mundo externo possa ser percebido como lugar onde projetar a si mesmo (que é a possibilidade de ver o mundo mais colorido) e perceber a vida com mais sentido. Se há objetivo, ele se encontra na sustentação das condições para a criação de uma vida pessoal, que é o transito entre o mundo de dentro e o mundo de fora, em que a realidade externa possa ser investida com os sentidos internos e vice-versa. A proposta é enriquecer a vida interna para que a realidade externa seja experimentada com um sentido de realidade mais vital, que a vida encontre propósito, significado.

Não é uma abordagem substituta às outras. Cada abordagem tem seu valor em seu campo próprio – a educação, a terapêutica, o trabalho, o lazer, o convívio social – Valem por si e precisam continuar acontecendo onde se fazem necessárias. Tanto não substitui como em muitas ocasiões acompanhei meu cliente a sua aula de ginástica, fisioterapia, exames de laboratório, padaria, teatro, musicais, padarias, trabalho, festas (…). Não raro, desenvolvi com meu cliente o sentido pessoal daquela atividade que para ele era, antes, percebido como algo invasivo do qual ele sentia necessidade de se recusar a fazer por justamente não encontrar naquela atividade qualquer significado.

A Amizade Terapêutica se diferencia apenas em tomar sob seu cuidado a pessoa não como objeto “do seu fazer” profissional; mas, a pessoa como sujeito de sua própria vida, construtora de sentidos e significados.

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Psicanalista e Filósofo

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