Partículas elementares, da liberdade à submissão

Quase todo mundo se utiliza daquele velho mito grego em que os males do mundo são soltos, espalhando seus efeitos maléficos por toda parte, restando somente, no fundo da caixa, a esperança. Outros gostam daquela metáfora extraída da teoria do caos em que o simples farfalhar das asas de uma borboleta pode desencadear catástrofes “tsunâmicas”.
Outros ainda se lembram, como se lá estivessem vivos de olhos arregalados, dos idos de 1789, quando aos gritos de “liberté, egalité, fraternité” as guilhotinas responderam com cabeças rolando pelo cadafalso.
Michel Houellebecq, em seu espantoso “Partículas Elementares” (1998), livro que leio na sequência do não menos assustador “Submissão” (2015), abre a Caixa de Pandora daquilo que lentamente caminhou do ‘não’ às formas opressivas do tradicionalismo fechado ao alívio dos efeitos irrespiráveis do desejo à céu aberto, passando pelo caos das infâncias amulucadas cortadas pelas lâminas da contracultura, feitas de drogas, iluminação, urina e fezes.
A apresentação das personagens principais, Michel e Bruno, através dos contextos de nascimento e vida de seus pais e avós, é uma sociologia valorativa requintada cuja sintonia fina, feita por quem esteve lá, efetiva psico-patho-logia, descreve a mudança dos tempos, o devir histórico como ciclo infinito de estabilidade e mudança, ordem e caos, catalisados por momentos distintos diferenciados por movimentos de respiração, subida da cabeça para fora da água, intercalados por dispinéias sufocantes categorizadas (ao modo Júlio Cotázar, em Histórias de Cronópios e de Famas, 1962) pelas figuras chamadas Sintomáticas e Precursoras. As Sintomáticas seriam aquelas figuras que se beneficiam das mudanças sociais de maneira direta, imediata. Por isso, gozam de alguma felicidade. As Precursoras, geração posterior, que nunca conheceram as imposições e opressões das gerações de seus pais, levam a cabo a missão de esvaziar a Caixa, átimo das transformações sociais das quais as Precursoras não podem sequer saber o porquê do início do ciclo de transformação. Em razão disso, de serem as catalisadoras das mudanças radicais, sofrem, e muito. A ambição de seus filhos é recuperar alguma ordem. É o que faz Michel, o químico da história. Impressiona como podemos sair da revolução dos costumes e ir em direção a uma (em sentido popular) bizantina Idade Média tecnológica.
Certas formas de sociabilidade do Vale do Paraíba e Sul de Minas podem ser explicadas assim: entre as rígidas formas de comportamento e ideal, vicejou as sementes das liberdades sempre prometidas, mas nunca alcançadas. Resultado: aqueles entre 40 e 60 anos nascidos e criados pelos pais nascidos e criados no entreguerras, assistiram (se viveram, como me disse certa vez uma senhora deste tipo, na “classe dos pobres”) pais/homens frequentadores de botecos, bêbados, raivosos, depressivos, fracos e eventualmente violentos, e a mães/mulheres desiludidas, histéricas, provocadoras, irrealizadas, melancólicas e eventualmente agressivas. Aos herdeiros destas transformações restam a premente sensação da falta de rumo, do sentido faltante. Aos seus filhos, falta-lhes o sentido, sobra-lhes a necessidade das certezas polarizadas. Como naquele poema de Machado de Assis, Círculo Vicioso, voltamos ao começo: pedimos por submissão.

Recomendo a leitura.

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Psicanalista e Filósofo

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