Escola imersa na personalização

Não digo que a escola seja somente socialização. Exagero. É também conhecimento. O problema está em que a dimensão do conhecimento é trabalhada nos intervalos dos problemas de socialização, que por sua vez sofre daquilo que Gilles Lipovetsky chama, para caracterizar os tempos atuais pós-modernos, de processo de personalização. Aí é que o tempo escolar de conhecimento é drenado para solucionar os problemas da personalização, que – permita-me recorrer a uma caricatura – consome 98% do tempo disponível.

Antes que algum educador profissional me corrija, personalização aqui é um termo técnico utilizado pelo filósofo acima citado para descrever uma modificação no eixo central da gestão dos comportamentos, da ética, dos corpos; em uma palavra, dos modos de ser dos herdeiros da modernidade. Portanto, não se refere àquela outra acepção do termo personalização usada em educação quando, por exemplo, se acompanha um determinado aluno, de forma personalizada, em suas dificuldades de aprendizagem específicas em dada disciplina. Personalização como forma de ser do mundo contemporâneo é, grosso modo, aquela licença que supomos ter adquirido para termos o direito de fazer desdobrar todo nosso eu.

Nós não nos acanhamos de pensar que nosso jeito de ser deve ser aceito e respeitado pelo meio que nos circunda sem qualquer restrição. O lado positivo é que todas as formas de vida e de viver ganham ou devem ganhar relevância, vez e voto. O negativo é que não conseguimos, na maioria das vezes, criar uma regra que seja comum, uma vez que o comum cede lugar ao desdobramento do eu, que como sabemos, é um poço sem fundo. Quanto mais cavamos, menos chegamos ao fundo. Na prática, a escola, aqui exemplo de instituição atual imersa nos problemas da personalização, precisa gerenciar gostos os mais diversos quase sempre sem sucesso: basta pensar na dificuldade de imposição de uma regra qualquer.

O que serve para um, desagrada o outro. Mas não se aplica a todos? Resposta: o que é todos? Um pai acha que estudar a democracia grega é fundamental; outro pensa que compreender a opressão vivida por uma tribo nômade na Malásia (não sei se existem tribos nômades na Malásia) é que é fundamental; outro ainda entende que se seu filho vive apartado das redes sociais e ouve Schubert deveria ser protegido da influência daquele coleguinha que ao seu lado no recreio anda em câmera lenta como se dançasse ao som do Mc Coisinha (não sei se existe algum Mc Coisinha); a outro pai parece de suma importância que os alunos convivam com suas diferenças que a tudo se ateie o fogo da fraternidade. Acrescente a esta conta todas as idiossincrasias de professores, coordenadores e diretores: uma diz “fulano passou dos limites!” A outra responde “mas ele está lidando com o luto!”; isso enquanto um dos pais espera por punição severa, daquelas que se praticavam no outono da Idade Média (tipo, apedrejamento do enforcado); isso enquanto o outro pai segue pedindo por compreensão e empatia pela dor de seu filhote.

E a dona da escola? Como precisa pagar todas as contas e salários, segue tentando fidelizar (personalizar) essa gente toda. Nada muito diferente ocorre na escola pública cujo eixo de fidelização é o raio da política.

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Psicanalista e Filósofo

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