Um bebê silencioso

Em um episódio da série Night Visions (2001), cujo título, muito apropriado, é Harmony, o carro de um homem quebra numa cidadezinha norte-americana (daquelas que informam o número de habitantes na placa de boas-vindas). Hostis a estranhos, os moradores toleram o alien até que seu carro possa ser consertado. Entrementes, o forasteiro se envolve com os moradores e aos poucos vai conhecendo aquilo que um citadino desencantado, e escolarizado, chamaria de mito fundador: uma narrativa sobre a origem comum de um povo e sua decorrente moral – inclusos aí seus deveres e proibições. O vilarejo havia sido agraciado com o direito à vida pela benevolência não gratuita de um deus mau, um monstro que em troca de não devorar a cidade exige que os habitantes não ouçam música. O civilizado abre seus pulmões e sua retórica para chamar à razão os atrasados: é apenas um mito! Convencidos pelas luzes da razão e da ciência de que entregaram a vida de tantas gerações ao arbítrio de uma historinha contada ao longo dos tempos, a cidade toda, na praça central, se entrega ao deleite da música, certos de que revolucionariam suas vidas a partir daquele festim darwiniano. Ledo engano. O monstro aparece e devora a cidade.

Os nossos tempos podem ser compreendidos pela oposição entre o que se entende por modernidade/pós-modernidade e as Eras pré-modernas. Para Furedi (2021), a queda da autoridade moral é a marca maior de diferenciação entre as Eras: entre os pré-modernos, a autoridade moral está, firme e sólida, conferindo valores ao Mundo e significando as existências individuais e coletivas[1]. As identidades, por exemplo, significam coisas diferentes em sociedades tradicionais comparativamente aos dias atuais. Nascer servo ou nobre não trazia os problemas identitários portados pelos habitantes de hoje[2]. Estar predestinado à nobreza facilitaria a assunção identitária, na medida em que a ação da autoridade moral numa coletividade é dotar os objetos, inclusive os sutis – como a identidade –, dos significados sólidos e perenes resistentes ao derretimento e à liquidez. Servidão e nobreza eram predestinação, não escolha. A propósito, para Zygmunt Bauman (2009), a modernidade é justamente a troca da predestinação pela autodeterminação. A identidade, nas trocas das Eras, se constitui como crise, porque deixa de receber “de fora” sua significação. O “quem sou” passa a ser um lugar vazio à espera de significados incompletos e limitados por obstáculos que não deveriam, enquanto objetos sólidos, resistir à autodeterminação. O dever (LIPOVETSKY, 1992) e a negatividade do outro (HAN, 2016/17) são exemplos de figuras sociais que funcionam como obstáculos à autodeterminação.

Furedi mostra que a identidade passa por um caminho peculiar em nosso século, migrando de uma conceituação psicológica até seu status político, passando por um estágio cultural. A troca da predestinação pela autodeterminação deságua em dois caminhos: o primeiro é o do rompimento com os preconceitos que não fazem bem à pele nem aos negócios; o segundo é o da crise constante através da qual o humano passa a ser um projeto sempre em aberto. Impossível se deixar deitar numa rede com um livro sem ser assaltado por pensamentos obsessivos sobre aquilo que se deixou de fazer. Ao lidar com a crise – e seu quantum de angústia – a identidade nega sua crise consumindo autoajuda e remédios; obscurece o dever (com a consequente inflação do judiciário e da polícia: onde não há moral, é preciso o longo braço da lei, das leis e da moral de ocasião com viés tribal/identitário) e joga pela janela a negatividade do outro (ocasião em que o outro se apresenta como alteridade e, assim, nos revela a nós mesmos para além daquilo que o nosso narcisismo almeja manter na imagem idealizada). Por último, e não menos importante, os obstáculos à autorrealização identitária são alocados na esfera da política e dos direitos: a identidade fez sua morada nas famosas políticas de identidade, nas quais o que falta não implica uma busca pessoal, mas o reclame da dívida – direito percebido como devido e sempre negado. Não havendo predestinação para significar na realidade as identidades, abre-se para a autoinvenção de si mesmo. Daí que a identidade em abertura (crise) não pode ser obstaculizada pelos entulhos de uma ordem moral que impõe deveres ao modo de um negativo, entendido e repelido, como outro (heterós) revelador. Os safe espace universitários, os lugares de fala, o especialista atmosférico de internet, o consumidor Disney (aquele que precisa ser encantado) e o mercado de trabalho feliz (quando promete dotar de significado a vida do infeliz) resultam disso. Os obstáculos têm uma curiosa propriedade: eles podem ser obstáculos numa situação e, em outra, ser justamente o objeto promessa de realização identitária. Ou seja, a crise da identidade é também a crise dos obstáculos à sua realização. Exemplo disso são os filhos. Para algumas pessoas, ter filhos é ao mesmo tempo um elemento de autorrealização identitária e um obstáculo à realização da identidade (quando o filho põe em risco a vida de solteiro pós-separação ou aquela almejada pretensão profissional). Não espanta que o mantra “equilibrar as demandas” seja um significante importante em nossos dias – que implica acender uma vela para Deus e outra para o Diabo – as técnicas de autoajuda de final de semana se alimentam disso.

Posto que as identidades, e suas inexoráveis crises, não vicejam no vácuo – elas se constituem e são constituídas socialmente –, cabe perguntar se haveria alguma relação entre o modo atual de configuração da sociabilidade (pós-queda da autoridade moral) e a “produção” das novas subjetividades. Com subjetividades se quer dizer, aqui, para além do particular e do universal, o campo do psíquico, do pessoal, do “interno” ao sujeito, à pessoa, numa palavra, o singular (MEZAN, 2002).

O outro: não há modelo teórico em psicanálise que não entenda a relevância da presença do outro para o acontecer humano. Ainda que se possa argumentar que o entendimento metapsicológico freudiano privilegie o aparelho psíquico e o corpo, portanto as instâncias psíquicas e as pulsões, os elementos subjetivadores decisivos encontram-se, para Freud, em dois momentos em que a presença do outro é fundamental: no começo, quando a condição desamparada (hilflosigkeit) obriga a presença do outro primordial (mãe, cuidador, a face humana) e na travessia para o mundo propriamente humano cultural, o famoso Édipo, em que a triangulação pai, mãe filho decide a sexuação e a identidade. Em Winnicott, a importância do outro para constituição da subjetividade é ainda mais evidente. O deslocamento (LOPARIC, 1997) do eixo edípico para o eixo dos cuidados, através do conceito de ambiente, introduz um modelo teórico em que o que quer que seja da ordem do humano só acontece quando o ambiente[3] for suficientemente capaz de sustentar os processos maturacionais potenciais para o self[4]. Nos dois modelos, as funções materna e paterna (e a organização social e cultural que, por sua vez, os sustentam) contam para a realidade e o vir-a-ser do infans. Como na Paideia grega (JAEGER, 2013), há um atravessamento, desde os cuidados primários, do pessoal pelo social envolvendo o bebê humano num invólucro cultural. Dito de outro modo, todo agrupamento humano dispõe de alguma forma de aculturação. A família (qualquer que seja sua forma), na medida em que é atravessada pelo social, o constitui; por ele é constituído e o transmite aos que nascem, fazendo de sua cria um ser humano daquele modo.

Em tempos de declínio da autoridade moral, e derrocada do outro, como as subjetividades se constituem, se aculturam?

Nos tempos de Freud a subjetividade passava pela instância do Pai (ideal), o que resulta na existência da ordem moral sustentada socialmente de forma triangular: na empresa o chefe; na família o pai; na escola o professor, etc. Figuras que encarnavam a autoridade e transmitiam às identidades o seu valor fixo e sólido: o que é ser homem, o que é ser mulher, o que é ser aluno, empregado, seus lugares, seus deveres e suas formas de realização, modalidades de gozo e sintomas; sobretudo, o mal-estar decorrente deste tipo de laço social: a recusa à autodeterminação em nome de ideais maiores que o interesse pessoal e as consequências pulsionais mortíferas. Pode-se resumir assim, freudianamente, a educação do século passado até por volta dos anos 60.

Com a inversão do eixo triangular para o horizontal[5], em que o ideal de eu está lá (quando está), mas não funciona – é proibido proibir: ganha-se em liberdade o que se perdeu em autoridade. Pode-se “escolher” não ter família nem filhos; casar ou não casar; ter relacionamentos fluidos, tanto quanto fluidos são os gêneros. A fluidez é tanto liberdade quanto técnica de evitação do peso que os objetos sólidos carregavam no passado. Reduzir a quantidade da prole é tanto liberdade para se realizar noutra esfera que não apenas a da parentalidade quanto não se haver com as exigências dependentes inerentes à criação dos pequenos.

A criação de um shih-tzu é menos exigente e custa menos.

O bebê silencioso

Grande ameaça do filme Um Lugar Silencioso (2018), criaturas devoradoras de gente são atraídas pelo som. Primeira cena de impacto: um garotinho, à furtiva, brinca com seu foguetinho (metáfora do desejo de fuga); emitindo sons e luzes, o brinquedo e a brincadeira atraem a criatura. De seu ataque mortal restam apenas o espanto e a culpa nos que ficaram vivos. O temor e o suspense do filme vão escalando em intensidade quando percebemos que a protagonista está às vésperas de dar à luz um bebê.

Todos sabemos que um bebê recém-nascido deve gritar a vida que lhe entra e sai dos pulmões clamando existência.

Nada muito diferente daquilo que se vive no mundo para fora das telas dos cinemas: os nossos bebês também não podem chorar fora de hora, ao preço de causarem grandes danos à ordem em que gira a máquina de produção do nosso modo de viver. Se o bebê chorar fora de hora, o monstro do desemprego e da perda das possibilidades de autorrealização aparece para assaltar pais, mães e educadores. Uma criança que demanda demasiadamente pode comprometer o retorno ao trabalho de seu cuidador, quando ele aspira participar daquele grande projeto que significaria sua escalada na empresa antes que o monstro da velhice o tome de assalto. O mesmo se pode dizer do professor que tem seu plano de aula rompido pela insistência de certas de crianças em serem crianças.

Tal qualidade do laço social contemporâneo marca de modo indelével as condições de sustentação das experiências iniciais dos filhotes de humano nos dias de hoje. Não raro, em lugar daquela “devoção” apontada por Winnicott (1956) como necessária ao exercício suficientemente bom da acolhida inicial ao bebê, temos vivências de ansiedade, preocupação, depressão e formações paranoides presidindo os cuidados. Equilibrar as demandas é eufemismo para sofrimento. Cuidar de uma criança, em especial nos estágios mais dependentes (não importa a idade), exige uma qualidade de presença que é negada pela exigência de autorrealização identitária. De assunto trivial, a criação e a educação das crianças figuram, quando não políticas, discussões psicopatológias. Não raro, crianças em escolas são identificadas pelas siglas de seus (pseudo) diagnósticos. Sofrimento inscrito na raiz própria da cultura (a condição material da vida, a forma do capitalismo na Era da queda da autoridade) em que optar é o mesmo que perder e perder é não se realizar. O silêncio do bebê assegura que uma operação inversa aconteça: no lugar de adultos cuidando de crianças, temos crianças se ajustando para que a crise identitária não fragilize o adulto. A existência direcionada para responder à intrusão ambiental, essência daquilo que Winnicott (1960) chama falso self, é a matriz da sensação de vazio, de falsidade, de falta de sentido e da necessidade narcísica. Sobretudo, explicita a razão da hipertrofia da identidade, fenômeno que realizou um spillover migrando sua residência do interior da subjetividade para a externalidade do ringue político. Enquanto protegem os adultos da agudeza de suas crises, os pequenos recebem de volta sua própria crise identitária, em ameaça de desintegração, solidão, incerteza, experiência de falsidade e melancolia, cujo remédio, buscado na externalidade, é o combo aceitação sintomática, química (lícita ou ilícita) e política identitária.

Referências

FREUD, S. (1930) Mal-Estar na Civilização. In: Obras Completas de Sigmund Freud: Mal-Estar na Civilização, Novas Conferências Introdutórias e outros textos. Tradução de Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Cia das Letras, v. 12, 2010.

HARMONY (ep. 22). Night Visions [Seriado]. Direção: Paul Shapiro. Produção: Robert Petrovicz, Tracey Jeffrey. EUA/Canadá: FOX, 2001.

JAEGER, Werner. Paidéia – A Formação do Homem Grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

LACAN, Jacques. Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

LILLA, M. Mente Naufragada. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2018.

LOPARIC, Zeljko. Winnicott, Uma Psicanálise Não-Edipiana. In Revista de Psicanálise, vol. IV, nº 2, out. 1997.

MEZAN, R. Subjetividades Contemporâneas. In: Interfaces da Psicanálise. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

UM LUGAR SILENCIOSO. Direção: John Krasinski. Produção: Michael Bay. Estados Unidos: Platinum Dunes, 2018. Amazon Prime.

WINNICOTT, D. W. (1945) Desenvolvimento Emocional Primitivo. In:Da Pediatria à Psicanálise. Tradução de Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

__________________(1956) Preocupação Materna Primária. In:Da Pediatria à Psicanálise. Tradução de Davi Litman Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago, 2000.

__________________(1960) Distorção do Ego em Termos de Falso e Verdadeiro Self. In:O Ambiente e os Processos de Maturação. Tradução de Irineo Constantino S. Ortiz. Porto Alegre: Artmed, 1983.

__________________(1963) Da Dependência à Independência no desenvolvimento do indivíduo. In:O Ambiente e os Processos de Maturação. Tradução de Irineo Constantino S. Ortiz. Porto Alegre: Artmed, 1983.

[1] Implícito está que na História não existe o dia X em que as formas de viver tradicionais assinam a carta de aposentadoria, retirando-se às margens de algum lago pescando tilápias ou jogando dominó na praça. As linhas da História correm em paralelo – apenas que uma linha se mostra a mestra, o signo da mudança. Basta ver que o tema de Mal-estar na Civilização (FREUD, 1930) – o recalque do dever não se faz sem um cadinho que retorna em agressividade e destruição – não é exatamente pós-moderno.

[2] A mente reacionária (LILLA, 2018) pega carona em constatações como estas para idealizar um passado buscando recuperá-lo numa utopia esplendorosa futurista feita de um passado glorioso. Não é o que se pretende aqui. Apenas marcar a diferença para entender por quais caminhos a identidade passou a ser algo fundamental para os dias de hoje.

[3] A mãe, o pai, a família, a sociedade, a cultura: toda uma ordem não-eu (não-self)sustentando processos integrativos, processos de personalização e processos para aquisição do sentido de realidade e da vida cultural.

[4] Importante notar que há psicanalistas, como Gilberto Safra, que identificam modos (catastróficos) de subjetivação sem a presença do outro.

[5] Pode-se falar disso em termos dos resultados daquilo que Lacan (2003) chamou de declínio da função da imago paterna: não que não haja pai ou autoridade, só não tem a eficácia de outrora – um pai prefere ser o amigão do filho; uma mãe rivalizando imaginariamente em beleza e juventude com a filha, um professor que prefere dizer “vamos fazer um combinado?” ao invés de dizer “isso sim aquilo não”, etc.

Um bebê silencioso

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Ricardo Rodolfo Rezende Prado

Psicanalista e Filósofo

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